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Acredito que a Daily Meeting seja o evento ágil mais conhecido e praticado no mundo da TI. Até mesmo equipes que não adotam formalmente algum framework como Scrum, XP ou método Kanban praticam a nossa querida reunião diária em pé. Porém, ao longo dos meus 14 anos de experiência atuando em times de desenvolvimento de software tenho percebido que o significado e propósito da Daily tem sido muito mal compreendidos. Isso me leva também a acreditar que a Daily Meeting é o “evento ágil” mais mal praticado de todos.

“Se é assim que todo mundo faz, então é assim que deve ser feito”. Me atrevo a dizer que essa frase descreve bem o que muitas pessoas usam como argumento de autoridade para balizar ações e posicionamentos que tomam. Compreendo que em muitos casos seguir o que todos estão fazendo é a melhor opção que temos, afinal, o efeito manada também tem seus benefícios e pode nos dar a sensação de segurança, principalmente se estamos perdidos sem saber ao certo para onde ir ou o que fazer. Mas, qual é o meu ponto?

Provavelmente a reunião de Daily é uma dentre tantas outras reuniões que temos no nosso dia a dia de trabalho, na qual já estamos tão acostumados que podemos estar fazendo ela no automático sem sequer pensar sobre ela e se a fizemos da forma que gera os resultados que deveria. E que resultados são esses? E qual é o jeito mais adequado de se fazer? A seguir eu espero conseguir explicar sobre a Daily e o seu real propósito, os benefícios que ela foi projetada para trazer aos que a praticam e o quão anti-ágil ou anti-lean é praticá-la como vejo muitos fazerem, ao estilo status report.


Uma analogia para Daily

Eu gosto dessas duas imagens abaixo, porque elas me ajudam a tangibilizar a essência do que é uma Daily no seu sentido original.

O que podemos extrair das imagens acima?

  • todo time reunido: esse é o momento em que todas as pessoas envolvidas diretamente com a partida estão presentes e participando de forma ativa, falando ou escutando atentamente o que é dito;
  • uma partida está acontecendo: podemos concluir que há uma partida acontecendo porque tanto os jogadores de vôlei quanto os de futebol estão com seus uniformes oficiais de jogo. Ou seja, estão em meio a um desafio que deve ser superado;
  • todos pararam para conversar: todos aproveitaram o tempo da pausa pré-acordada para conversarem. É importante lembrar que os atletas já se comunicam o tempo todo durante o jogo, mas, mesmo assim, todos eles param para conversar. É o momento para uma conversa específica. Ninguém está ali se justificando ou relatando o que está fazendo para provar que está engajado;
  • uma meta em comum: está muito evidente para cada um do time qual é a meta a ser alcançada. Todos estão do mesmo lado, vestindo a camisa do time e com a mesma meta e objetivo: vencer o jogo e conquistar o campeonato;
  • ajustes na estratégia: o time está reunido para reafirmar o compromisso do plano inicial de superar o adversário ou para fazer os ajustes táticos e realinhamentos necessários para garantir o alcance da meta — vencer a partida. Em outras palavras, irão decidir se continuarão a fazer o que foi planejado e treinado ou tentarão um novo caminho, adaptando o plano inicial ou criando um novo plano.

Palavra do autor

No mesmo sentido dessa analogia que eu fiz acima com os times de vôlei e futebol, Jeff Sutherland, co-criador do Scrum, em seu livro: A arte de fazer o dobro pela metade do tempo, fala algo muito semelhante. Na verdade, sobre a forma de entender o que é uma Daily, ele vai além e diz:

A melhor abordagem se parece com as ocasiões em que os atletas se reúnem entre uma jogada e outra no futebol americano. Um deles pode dizer: “Estou com dificuldades com aquele defensor”. Outro responderá: “Deixa que eu cuido disso, vou abrir espaço para você.” O quarterback poderá dizer: “Nosso ataque não está conseguindo passar pela defesa, vamos surpreendê-los com um passe pela esquerda.”

Jeff Sutherland, co-criador do Scrum

Capítulo 4, página 80

Jeff conclui a analogia dizendo: “a ideia da Daily é que a equipe debata rapidamente como prosseguir em direção a vitória, isso é, em direção ao sucesso do Sprint.


Embasamento histórico

Por quê existe a Daily?

Em 1993, Jeff Sutherland, vice-presidente de tecnologia de uma empresa chamada Easel, estava construindo um modelo de trabalho com objetivo de potencializar sua equipe a construir software de forma assertiva e eficiente. Esse modelo de trabalho era um compêndio de práticas bem sucedidas em empresas que Jeff havia conhecido ou pesquisado sobre. Estava nascendo o que conhecemos hoje como Scrum, o qual estava naquele ano em sua primeira versão com Sprints de 4 semanas.

A equipe liderada por Jeff estava performando muito bem comparado ao período que antecedia a implantação dos Sprints, mas, para ele, o bom desempenho e resultados significativamente melhores ainda não eram o suficiente porque sentia que seu modelo de trabalho poderia oferecer algo que levasse sua equipe para um patamar acima do bom. Jeff sabia que faltava alguma coisa à equipe, embora não soubesse o que era exatamente. E foi assistindo aos vídeos dos jogos do All Blacks que Jeff e sua equipe entenderam o que faltava pra eles irem além e se tornarem excepcionais. A partir do momento em que eles viram a equipe do All Blacks emitirem o Haka e em seguida romperem a linha de defesa adversária, eles passaram a se questionar: “Como fazer para sermos assim? Por que não temos esse mesmo espírito?”

A resposta para as perguntas seria o caminho para elevar o padrão da equipe de Jeff e consequentemente adicionar ao Scrum um elemento que faria dele um método diferenciado capaz de transformar os times em equipes extraordinárias. Esse é um ponto chave para entender o motivo da Daily ter sido criada e nos questionarmos se ao praticá-la no nosso dia a dia estamos com esse mesmo sentimento e desejo que Jeff e sua equipe estavam em 1993 quando decidiram buscar uma forma de serem mais aguerridos e eficientes no seu método de trabalho. Eles estavam com um problema, eram apenas bons no que faziam e a Daily foi a solução encontrada para solucionar isso tornando-os um time com muito mais energia, sinergia e performance.


All Blacks é o apelido da seleção Neozelandesa de Rugby, essa seleção é considerada a melhor equipe de Rugby do mundo, eles são famosos por suas jogadas incríveis onde conseguem romper a linha de defesa adversária como ninguém e também porque antes dos jogos fazem a cerimônia do Haka, que é um grito de guerra que os guerreiros Maori faziam antes das batalhas, uma demonstração feroz do orgulho, força e unidade de uma tribo onde as ações incluem violentas pisadas com os pés, protuberâncias da língua e tapas rítmicos no corpo para acompanhar um canto alto.


Origem da Daily

Determinados em descobrir como se igualar ao All Blacks, a primeira equipe Scrum recorreu a literatura especializada para desvendar como as melhores equipes trabalhavam. Eles encontraram a pesquisa de Jim Coplien e o seu artigo intitulado de StandUp Meeting, onde ele descrevia sobre um determinado padrão.

Logo no início do desenvolvimento de grandes projetos de software acontecia muito desperdício de dinheiro (na casa dos bilhões de dólares anualmente) por conta dos frequentes fracassos em finalizar esses projetos ou de fazê-los dentro de um time-to-market aceitável. Por conta disso, muito dinheiro foi investido em pesquisas para entender o real motivo do fracasso nesse tipo de empreendimento.

Jim Coplien foi uma das pessoas que dedicou parte de sua a vida a entender como o trabalho no setor de desenvolvimento de software era realizado e como apenas uma pequena parte dos projetos davam certo. Em 1990, Jim foi convidado para inspecionar um projeto na Borland Software Corporation onde ele descobriu um time com a maior capacidade de produção de código já registrada até então. Esse time era responsável pelo projeto Quattro Pro for Windows e era composto de 8 pessoas que levaram 31 meses para produzir um milhão de linhas de código. Isso significa que cada membro da equipe produziu mil linhas de código a cada semana!

Em busca de uma resposta de como era possível uma capacidade de produção tão grande, Jim mapeou todos fluxos de comunicação entre a equipe e descobriu, resumidamente falando, que quanto mais todo mundo ficava sabendo de tudo o que estava acontecendo com o projeto mais rápido a equipe ficava. A nível de fluxo de informações a Borland tinha o maior percentual já encontrado até então, 90%, sendo que a maioria das empresas tinha cerca de 20%. 

Outro fator muito interessante é que o nível de informações entre as integrantes do projeto Quatro Pro for Windows era tão intenso que todos eles diziam: “o projeto havia sido feito mais de reuniões do que qualquer outra coisa”. Isso é surpreendente, não? Isso pode nos ensinar algo interessante, principalmente para quem tem aversão a reuniões. Me parece haver um consenso no meio corporativo de que muitas reuniões atrapalham e geram improdutividade. O que aprendemos com esse caso da bem sucedida equipe da Borland é que o nosso problema de improdutividade não está, necessariamente, no número de reuniões, mas, talvez, em fazer péssimas reuniões. 

Responda pra você mesmo quantas vezes você participou de reuniões sem escopo, sobre assuntos do qual você não teria nenhum envolvimento, com ausência de pessoas que eram essenciais e reuniões que eram finalizadas sem nenhuma conclusão ou plano de ação.

Dentre tantas reuniões que a equipe Quattro Pro for Windows fazia, uma delas que era especial, considerada o ingrediente secreto da Borland, era a reunião diária com todos integrantes do time para discutir como ia o trabalho. Reunir todos numa sala era crucial porque dava à equipe a oportunidade de se organizar e enfrentar os desafios.

Pois, foi justamente essa reunião diária, chamada por Jim Coliens de Stand Up Meeting, que a primeira equipe Scrum passou a adotá-la como o caminho que os levariam a se tornarem o All Blacks do Software. Jeff Sutherland copiou o padrão da Borland, mas fez adaptações antes de inseri-lo no Scrum, a principal foi limitar o tempo em 15 minutos, pois na Borland as reuniões diárias levavam no mínimo a duração de uma hora.


O que a Daily acrescentou para o Scrum

Após a primeira equipe de Scrum implementar a prática da Daily na sua rotina de trabalho, os resultados vieram. Eles estavam na terceira Sprint, a carga de trabalho planejada era a mesma usada na Sprint anterior, o que daria um mês de trabalho. Com a prática da Daily o trabalho foi concluído em apenas uma semana. Uma melhoria de 400% foi o que fez todos da equipe acreditar que talvez valesse a pena fazer a Daily.


Entendendo a Daily Scrum e suas regras

Conforme explicado no no texto indicado acima, a Daily Scrum nada mais é do que uma cópia customizada da StandUp Meeting que as equipes da Borland praticavam. Essa customização nada mais é do que um conjunto de regras, onde o mais importante não são as regras em si, mas o entendimento do porquê elas foram criadas, o que elas podem nos proporcionar e evitar. Segue abaixo as três regras:

Regra 1 — Deve ocorrer no mesmo horário todos os dias: o objetivo dessa regra é estabelecer ritmo regular, sendo sempre no mesmo horário cada integrante do time pode organizar sua agenda reservando nela o devido espaço para Daily. Não importa o horário que ocorrerá a reunião, se às 08:30h, 11:00h ou 15:00h, não importa. O importante é que todo time esteja presente sempre, isso é essencial. Por isso existe a flexibilidade na escolha do horário, afinal, cada time encontrará qual é o seu melhor horário.

Regra 2 — Não pode durar mais do que 15 minutos: a proposta da Daily é ser uma reunião objetiva, ágil e sem divagações, a ideia é obter a maior quantidade possível de informações valiosas e úteis no menor espaço de tempo possível. Sempre que houver necessidade de aprofundamento em algum tema, seja para resolução de um problema ou para debate de alguma ideia, isso deve ser anotado e tratado num outro momento.

Regra 3 — Todos precisam participar ativamente: não basta estar presente, é necessário participar ativamente, seja falando ou escutando, ambas são ações essenciais para comunicação eficaz.


Todos de pé e as 3 perguntas

Por muito tempo equipes adotaram religiosamente a regra de fazer a reunião com todos integrantes em pé, normalmente envolta do quadro de tarefas, onde cada integrante respondia às três perguntas: “o que você fez desde a última Daily? O que vai fazer até a próxima Daily? Tem algo impedindo seu trabalho?”. Há quem acredite que o motivo de se fazer uma Daily é responder as três perguntas, se isso não for feito então não é Daily. As três perguntas eram uma sugestão presente no Scrum Guide até sua última versão (2020), que, finalmente, não contém mais as famigeradas. 

Embora no início do Scrum responder as 3 perguntas fosse praticamente uma regra, seu valor era secundário. Responder as perguntas era um meio de ajudar os times que estavam iniciando a prática da Daily a serem objetivos, dando a eles um escopo do que cada um poderia falar sem fugir do propósito da reunião que era inspecionar como o time estava em relação ao seu objetivo no Sprint, e, ainda, o que eles precisariam fazer para contornar possíveis problemas ou impedimentos. Acabou que não deu muito certo e o que era pra auxiliar os times a serem objetivos colaborou para a reunião virar um momento de prestação de contas, onde cada integrante passou apenas a relatar o que estava fazendo. É comum que nas Dailys os participantes contem o que fizeram até mesmo de forma detalhada e, muitas vezes, a nível técnico, detalhando especificidades de implementação ou relatando até mesmo as reuniões que participaram no dia anterior apenas para prestar contas ao time.

Quanto a reunião de Daily ser em pé, Jeff Sutherland explica o motivo original, era para manter a reunião curta e ajudar os participantes a serem ativos na reunião, já que ficar em pé gera um certo desconforto. Nos dias atuais, por exemplo, muitas equipes trabalham no modelo remoto onde cada integrante trabalha de sua casa. Sendo assim, não há razão para que as pessoas fiquem em pé em suas residências para fazer a Daily. 

O que realmente importa não é ficar em pé, mas manter a participação ativa, seja falando, escutando ou anotando. Por isso, é importante entender a razão das coisas que fizemos e o seu propósito, pois assim sendo, mesmo que o contexto de aplicação mude, saberemos nos adaptar sem deixar de lado a essência e valor. Continua extremamente necessário a participação ativa de todos, mesmo que estes estejam deitados em uma rede na varanda de casa, sentados num sofá da sala na casa da praia ou numa cadeira de escritório em um espaço coworking no centro da sua cidade.


Como as Dailys acontecem no Kanban

Enquanto no Scrum a Daily tem o foco no objetivo do Sprint, no Kanban, o foco está no fluxo. David Anderson, autor do método Kanban, em seu livro “KANBAN Mudança Evolucionária de Sucesso para Seu Negócio de Tecnologia”, ele deixa claro que a Daily no Kanban acontece de forma diferente quando comparado a Daily dos métodos ágeis (como Scrum e XP, por exemplo). David explica que o formato da reunião é diferente porque a dinâmica é voltada a analisar a situação atual do fluxo de trabalho que deverá estar expressa fielmente através do quadro kanban. 

Isso significa que as informações relevantes sobre o que há de trabalho em andamento, quem está fazendo o quê, quais demandas estão bloqueadas e quais bem próximas de serem finalizadas estão evidenciadas para todos. Sendo assim, não há motivo para os integrantes da equipe desperdiçarem tempo repetindo na Daily as informações que estão diante de todos no quadro kanban. Assim sendo, a equipe pode usar o tempo da Daily de forma mais estratégica, debatendo por exemplo, se destinarão mais força de trabalho para entregar o quanto antes os itens que estão próximos de serem concluídos (colocando em prática o que diz um mantra muito famoso “pare de começar e comece a terminar”) ou se darão atenção para remover algum bloqueio, ou ainda, se darão vazão a itens parados em alguma fila de espera do fluxo evitando assim o aumento do lead time médio e diminuição da eficiência do processo.


Erros Comuns

Recapitulando um pouco do que já foi dito anteriormente, listo abaixo um resumo dos principais erros que já pude constatar ao longo do tempo na prática da Daily:

  • reunião demorada;
  • reunião de status report;
  • reunião para resolver problemas;
  • reunião para socialização;
  • único momento para atualizar o quadro.

Questões úteis para uma Daily

Visto que as famigeradas 3 perguntas sugeridas pelo Scrum Guide de antigamente mais atrapalharam do que colaboraram para o propósito original da Daily, listo abaixo alternativas que podem ser mais eficazes, indiferente se para Scrum ou Kanban:

  • O que podemos finalizar hoje?
  • Vamos formar a cultura onde o ‘finalizar’ é mais importante que o ‘começar’.
  • Estamos claros sobre as próximas tarefas?
  • O time precisa ter clareza sobre quais são as próximas tarefas.
  • Existe trabalho escondido?
  • Identificar e tornar visível toda e qualquer atividade que não estava prevista antes que impacte o fluxo de trabalho.
  • Há alguma tarefa prioritária?
  • Assegurar que todos estão agindo apropriadamente sobre os cards identificados como prioritários.
  • Existe algum impedimento?
  • Sinalizar impedimento que podem comprometer o andamento de alguma atividade.
  • Todas tarefas possuem valor?
  • Garantir que o time esteja trabalhando em tarefas que estão de acordo com a meta da Sprint.
  • Tem algo que podemos melhorar?
  • Capacitar toda equipe para a busca pelo aprimoramento constante, permitindo que as sugestões de mudança possam vir de qualquer membro da equipe.

Reflexão

Espero ter conseguido demonstrar a essência da Daily e como ela pode e deve ser uma reunião estratégica para o nosso dia de trabalho e ser uma força propulsora para o nosso Sprint e fluxo de trabalho. 

Contudo, deixo para reflexão as seguintes provocações: entendemos de verdade o que estamos fazendo no nosso dia a dia de trabalho? Estamos nos comprometendo com coisas que realmente nos geram resultado significativo para nosso objetivo como pessoa, time e negócio que ajudamos a construir? Estamos investindo tempo ainda que 15 ou 20 minutos diários em reuniões que resultam numa melhora do nosso trabalho? 

Responda para você mesmo e pergunte aos seus colegas: “se deixarmos de fazer determinada reunião, qual impacto que teríamos?” Havendo dúvida quanto a resposta, não seria isso um forte indicativo de que a reunião deve ser descartada, pelo menos no formato atual? Sugiro a vocês darem um passo além e ficarem alguns dias (uma semana) sem realizá-la para verificar o resultado real. Creio que essa reflexão vale para qualquer prática nossa no dia a dia de trabalho, mas incentivo fortemente a iniciar pela Daily.

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