Carreira
A síndrome do impostor quase me impediu de aceitar um desafio que mudou minha trajetória
6 minutos de leitura
Era início de 2024, eu tinha quase três anos como QA. O time de cartões de crédito, onde eu atuava, tinha acabado de entregar a migração de plataforma sem grandes problemas pois eu tinha praticamente todas as APIs e endpoints automatizados em Rest Assured com JUnit, os testes rodavam no Gradle e a pipeline no Jenkins estava redonda.
Mas uma notícia me paralisou completamente: “No próximo mês, você vai ficar duas semanas intercaladas (semana sim, semana não) no time do gateway de pagamento. Eles precisam de ajuda com a migração de AWS para Google Cloud.”
O time do gateway havia dispensado o QA deles. Ao pensar em assumir esta responsabilidade lembrei que gateway de pagamento é literalmente o dinheiro entrando. E se eu vacilasse, o cliente ficaria sem receber.
Naquela noite, não consegui dormir.
Quando a “consciência dos limites” é só medo disfarçado
No dia seguinte, marquei presencial com meu gestor. Atuo remotamente, mas precisava de uma conversa olho no olho. Fomos até a área de convivência, tomamos um café enquanto eu despejava todos os meus medos:
“O time não tem documentação nenhuma. Não tem automação. Os desenvolvedores são todos de outra consultoria e eu nunca falei com eles. Eu vou ter que aprender o produto do zero, entender fluxos de pagamento que nunca vi, lidar com pessoas que não me conhecem, e ainda entregar tudo em duas semanas intercaladas? Será fracasso na certa.”
Meu gestor me ouviu com calma. Para cada risco que eu apontava, ele me acalmava. E no final, ele disse algo que grudou na minha cabeça: “Se tem alguém que consegue fazer esse milagre em duas semanas, essa pessoa é você.”
Mesmo não confiante aceitei o desafio.
Hoje eu entendo que aquilo não era “consciência dos meus limites”. Era síndrome do impostor pura, disfarçada de humildade e realismo.
A primeira vez que ela apareceu (e eu nem sabia)
Para ser honesta, não foi a primeira vez que senti isso. Um ano antes, logo após concluir o Reset – com treinamento, mentoria e acompanhamento decisivos para consolidar o meu conhecimento em qualidade – eu estava prestes a fazer minha primeira troca de time.
Eu tinha passado um ano inteiro trabalhando num produto de assinatura – um ecossistema completamente separado do e-commerce principal do cliente. Cuidávamos do fluxo inteiro: desde a solicitação de assinatura ou compra de kit até a entrega do produto físico por um parceiro. Era um sistema totalmente apartado, éramos o único time que usava PHP, nossas aplicações não conectavam com o sistema principal (em JAVA) em fluxo nenhum. Nunca havia surgido a necessidade de entender nada além do que eu trabalhava.
O time era incrível, formado por pessoas sêniores, incluindo um QA experiente que explicava tudo, orientava e ajudava a entender os fluxos. Eu me sentia segura naquele contexto fechado.
Quando soube que ia trocar de time – sozinha, sem ninguém de QA comigo, só dois dias de passagem de conhecimento – o medo bateu forte: “Será que o que eu sei é porque tem alguém me explicando? E se eu só me acostumei com este produto específico, dentro de um ambiente isolado, e não entendo nada de qualidade de verdade?”. Era isso ou desistir de ser QA.
Na primeira reunião com o líder técnico do novo time (cartões de crédito em parceria com uma grande instituição financeira), senti um alívio gigante. Entendi o que o que foi falado e compreendi o propósito do produto e os fluxos.
O produto era completamente diferente – de assinaturas e kits físicos para cartões de crédito e transações financeiras – mas eu entendia o processo de qualidade, independente do contexto. Eu não tinha só me “acostumado” com aquele produto anterior. Eu realmente tinha aprendido.
Mas a síndrome do impostor? Ela não desapareceu. Ela só estava esperando o próximo desafio.
O desafio impossível (que não era impossível)
Quando cheguei no time do gateway de pagamento, vi que os desafios eram ainda piores do que eu imaginava: sem documentação, sem testes automatizados e desenvolvedores que eu nunca tinha visto. E eu tinha duas semanas para mapear, escrever e executar todos os testes regressivos de APIs e endpoints de um gateway de pagamento durante uma migração de plataforma. Mais de 50 endpoints. Testes de contrato, smoke tests, testes de segurança, testes negativos, testes de borda. No final, foram mais de 1.000 validações.
Mas eu tinha firmado um acordo com meu gestor. E eu ia cumprir. Colei no líder técnico, questionei e investiguei. Fiz ele explicar a mesma coisa várias vezes até eu entender o fluxo completo.
Depois, ponderei sobre a estratégia. O correto, no meu melhor cenário, seria criar uma automação de verdade: Java, JUnit, Rest Assured, Gradle, estruturar tudo do zero. Mas seria impossível entregar no tempo proposto. Automação, porém, era a única maneira de conseguir testar tudo no prazo.
A solução? Documentei todos os endpoints e joguei no Postman. Enquanto os devs faziam a parte deles, eu criava scripts de testes e validações direto no Postman mesmo – collections completas com todos os cenários.
Quando tudo estava pronto, consegui testar todas as APIs e endpoints em menos de 5 minutos. Sucesso total.
O que a síndrome do impostor quase me roubou
Hoje, como Líder de Engenharia na CWI, eu penso muito nisso.
Se eu tivesse me deixado vencer pela síndrome do impostor – aquela voz insidiosa disfarçada de “humildade” e “consciência dos meus limites” – eu não estaria onde estou.
Eu não teria provado meu valor durante aquele desafio. Não teria passado pelo período de mentoria pré-promoção onde tive que mostrar meu trabalho para pessoas que não me conheciam.
A síndrome do impostor não te protege. Ela te paralisa.
E o pior: ela se disfarça tão bem de “ser realista” que a gente nem percebe que é medo.
O que mudou (e o que eu digo para o meu time hoje)
Quando vejo alguém do time com aquele olhar de pânico – aquele “eu não sei o suficiente pra isso” – eu lembro da minha conversa com meu gestor na área de convivência, tomando café, enquanto eu listava todos os motivos pelos quais eu ia falhar.
Tento transmitir o mesmo conforto e acolhimento que recebi. E eu digo a mesma coisa que precisei ouvir: você não precisa saber tudo. Ninguém precisa.
Eu não sabia nada de gateway de pagamento quando comecei. Não conhecia os desenvolvedores. Não tinha documentação. E mesmo assim, fiz funcionar – não porque eu era excepcional, mas porque eu fiz as perguntas certas, busquei ajuda, e usei as ferramentas que eu tinha (no caso, Postman em vez de uma automação completa).
A diferença entre um QA júnior inseguro e um QA sênior confiante muitas vezes não é técnica. É a capacidade de dizer “não sei, me explica?” sem sentir que você está se expondo como uma fraude.
Três sinais da síndrome do impostor
Aprendi a diferenciar humildade real de síndrome do impostor. Aqui estão os sinais:
1. Achar que precisa saber tudo antes de aceitar o desafio
Realismo: “Vou precisar de ajuda pra entender X e Y.”
Impostor: “Não posso aceitar isso porque não sei X e Y ainda.”
Quando recebi o desafio do gateway, eu achava que precisava já conhecer o produto, já ter trabalhado com aqueles devs, já ter tudo mapeado. Mas ninguém começa sabendo. A curva de aprendizado faz parte do processo.
2. Atribuir os seus sucessos à sorte ou ajuda externa
Realismo: “Consegui porque estudei, me preparei e pedi ajuda quando precisei.”
Impostor: “Só consegui porque tinha alguém me ajudando/porque deu sorte/porque era fácil.”
Quando entreguei o gateway, minha primeira reação foi pensar “ah, mas eu só usei Postman, não foi uma automação de verdade”. Levou tempo para eu reconhecer: eu resolvi um problema complexo com a ferramenta certa para o contexto. Isso é competência, não sorte.
3. Ter medo de fazer perguntas
Realismo: “Não entendi, você pode explicar de novo?”
Impostor: “Não vou perguntar porque vão perceber que eu não sei nada.”
Eu “colei” no líder técnico e fiz ele repetir as explicações várias vezes. No começo, eu tinha vergonha. Mas era isso ou falhar. E percebi: ninguém julga as pessoas por fazer perguntas. O julgamento acontece se você fingir que entendeu e entregar errado.
A moral da história (que eu gostaria de ter aprendido antes)
Síndrome do impostor não é humildade. É medo fantasiado de limite.
Perguntar não é fraqueza. Pedir ajuda não é incompetência.
Aceitar um desafio sem saber tudo não é arrogância — é parte do crescimento.
Eu não precisava criar uma automação completa para resolver o problema. Eu precisava testar com qualidade no prazo. E fiz isso.
Se hoje sou Líder de Engenharia, não é porque eu já sabia tudo — é porque aceitei desafios que me assustavam e confiei que aprender faz parte.
Da próxima vez que aquela voz disser “você não sabe o suficiente”, pergunte:
isso é humildade ou é medo disfarçado? Se for medo, respire e vá assim mesmo. Você sabe mais do que imagina e pode aprender o resto.
O gateway não quebrou. E sua carreira também não vai quebrar se você pedir ajuda.
Vamos conversar?
Se você também já sentiu essa síndrome do impostor batendo forte, ou está enfrentando um desafio que te assusta (mas que você sabe que deveria aceitar), vamos trocar ideia:
LinkedIn: https://www.linkedin.com/in/joprestes84/
Medium: https://medium.com/@joprestes
GitHub: https://github.com/joprestes